O Espelho não se quebrou
O espelho não se quebrou
DVD ao vivo 2007
Os rituais são eventos extraordinários que, entre outras coisas, podem transportar o passado para o presente, rompendo a falsa aparência da irreversibilidade e da linearidade do tempo. No contexto urbano pode-se vislumbrar essa eficácia simbólica dos ritos em performances teatrais ou musicais. Cremos que precisamente o show de Diogo Nogueira; na terça-feira, 27 de novembro de 2007, no Canecão, foi uma dessas ocasiões rituais em que o passado, o presente e o futuro portelenses convergiram em uma cena memorável para o público presente.
Objetivando lançar seus primeiros CD e DVD solos, pela EMI Music, Diogo Nogueira subiu ao palco com um repertório que incluía canções célebres de seu pai João Nogueira, bem como composições de Nelson Rufino e Almir Guineto. Em determinado momento do espetáculo também subiram ao palco Marcelo D2 e Marcel Powell, com quem, entre outras músicas, cantou “Canto de Ossanha”, de Baden Powell e Vinicius de Morais. Os acordes emitidos pelo violão de Marcel Powell ainda soam em nossos ouvidos: “Coitado do homem que cai no canto de Ossanha. Traidor. Coitado do homem que vai atrás da mandinga do amor”.
Destacaríamos também dois momentos específicos da parte do show destinada a reverenciar o passado – tanto da linhagem mais nobre de compositores da Portela quanto da Música Popular Brasileira – quais sejam: as execuções das músicas “Poder da Criação” e “Espelho”. No primeiro caso, ficou explícito que ninguém gosta ou faz samba só porque prefere. Esse samba abriu a mente e o coração de todos os presentes como um delicioso aperitivo de todas as emoções que ainda seriam suscitadas por Diogo Nogueira no decorrer do seu show.
Inebriados pela magia do samba, fomos brindados ainda por um momento comovente e inesquecível, quando nos telões do Canecão apareceram imagens em preto e branco de João Nogueira cantando a primeira parte da música “Espelho”. A segunda parte foi cantada por Diogo Nogueira, visivelmente emocionado. Ao nosso lado, Lígia Santos – filha de Donga e biógrafa de Paulo da Portela – não escondia seu pranto. Talvez, como todos nós, relembrando, cada qual à sua maneira, as boas lembranças de nossos pais.
Após fazer o público rememorar coletivamente sambas clássicos do passado, Diogo Nogueira apresentou uma série de composições novas, algumas de sua autoria, outras da nova safra de compositores da Portela, como “Trem do Tempo” (dele, Ciraninho e Alceu Maia) e “Vi no seu Olhar” (Wanderley Monteiro). O final do espetáculo foi animado por Diogo Nogueira cantando os sambas-enredo de 2007 e 2008 da Portela, ambos de sua co-autoria. Ele estava acompanhado por sua banda, Analimar, filha de Martinho da Vila, tocando cuíca, e por integrantes da bateria da Majestade do Samba, sob o comando do Mestre Nilo Sérgio. Ao lado esquerdo do palco, o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da maior campeã do carnaval carioca fazia resplandecer a águia altaneira e a cores azul e branco da bandeira da Portela.
Saímos com a seguinte impressão: se Diogo Nogueira tinha algum receio de que o espelho se quebrasse e sua performance no palco não refletisse a herança poética de seu pai, esse medo se desfez. O espelho não se quebrou. João Nogueira, onde estiver, deve estar vaidoso do talento musical que deixou. Seu nome, sua poesia, como de outros sambistas do passado, não cairá no esquecimento, pois uma nova geração de portelenses está aí para provar que a Portela continua sendo um fértil celeiro de bambas. Viva os rituais, os espetáculos, as rodas de sambas, os shows que nos dão a certeza da continuidade do samba. Este gênero musical que nos faz sair cantando por aí: Eh, vida voa, vai no tempo, vai. Ah, mais que saudade, mas eu sei que lá no céu tem vaidade e o orgulho de seu filho ser igual seu pai.
Autores: Ronald Ericeira e Marcelo Rocha