27/04/2024
A Escola

A semente

O contexto e os primeiros personagens

Dona Esther (Foto: Revista Portela 1972)

Criada em 1644, a antiga freguesia de Irajá se estendia por uma vasta região ocupada por fazendas que eram o celeiro da colônia e posteriormente da corte. Esta imensa área, ao longo dos séculos XVIII e XIX, chegou a ter 13 engenhos de açúcar produtivos e importantes economicamente.

Entre eles, talvez o mais próspero, merece destaque o engenho do Portela, cujos escravos, no labor do dia-a-dia, contribuiriam para engrandecer a região que se estendia da fazenda do Campinho até o Rio das Pedras, e que mais tarde herdaria o nome do boiadeiro e mercador mais famoso da localidade: Lourenço Madureira.

Em fins do século XIX e início do século XX, a economia da região, amparada principalmente na força do trabalho escravo, entra em uma inevitável crise. Os antigos latifúndios são aos poucos repartidos por pessoas pobres que fugiam das reformas urbanas que ocorriam no centro da capital da jovem República Brasileira. O trem, chegado em 1890, trazia diariamente um grande contingente de pessoas desprovidas de qualquer bem material para os já conhecidos subúrbios. Especialmente, merece destaque para nós a brava população que, enfrentando todos os tipos de dificuldades, ocupou a região próxima ao Rio das Pedras através da antiga estação de Dona Clara. Mais tarde, a ainda jovem localidade, que herdou o nome do Rio vizinho, receberia o definitivo nome de Oswaldo Cruz, em homenagem ao famoso sanitarista falecido em 1917.

 

Estação Dona Clara, em 1908 (Foto: http://www.estacoesferroviarias.com.br)

 

Desta forma, fugidos e perseguidos, como infelizmente é hábito em nossa história, os negros trouxeram sua música, sua dança, sua religião e sua inigualável forma de enfrentar a dor através da arte para a “roça”. Foram estes negros, muitos deles vindos de outras partes do Brasil, sobretudo de Minas Gerais e do antigo Estado do Rio, que plantaram a semente da batucada nas festas da região. O cavalo torna-se o principal meio de transporte. Imensos valões dificultavam a passagem dos moradores. Não havia água, luz ou qualquer tipo de conforto já comum nos bairros mais abonados da cidade. O antigo engenho cedeu espaço e nome para a principal via da região: a estrada do Portela.

Contudo, se o cenário encontrado no novo bairro era hostil, hostilidades maiores aqueles negros – ex-escravos e seus filhos – já tinham enfrentado em suas vidas de dor e sofrimento. Se a senzala e o banzo eram enfrentados com canto e dança, formas de manter vivas as tradições herdadas de seus ancestrais na mãe África, as dificuldades no novo ambiente não receberiam tratamento diferente. A humilhação e o aviltamento que os negros excluídos e esquecidos pela sociedade racista e desumana sentiam eram combatidos em forma de arte, música e expressões de uma cultura que insistia em se auto-afirmar apesar de tudo. Assim, como num passe de mágica, surgem as belas poesias dos primeiros sambistas de Oswaldo Cruz.

Os primeiros portelenses foram verdadeiros alquimistas. Magos capazes de transformar dor em arte, e sofrimento em notas musicais. A dificuldade, em suma, foi a matéria-prima das primeiras composições da Portela.

Como é característico de toda comunidade carente, o corpo social amenizava as dificuldades e compensava a falta de opção de lazer no bairro. Oswaldo Cruz torna-se um lugar onde as relações humanas são sinceras. Onde a amizade de fato existia. Quase uma imensa família, pois os muitos problemas quotidianos eram por todos compartilhados.

Esta integração foi fundamental para a história da Portela, pois possibilitou uma vida social marcada por festas religiosas, batucadas e jongo, manifestação cultural herdada dos antepassados escravos.

O jongo, como expressão tipicamente rural, encontrou na região de Madureira e Oswaldo Cruz, afastadas do centro da cidade, um campo fértil para a preservação quase intacta de sua forma mais pura e original.

 

A festeira, Dona Esther (Foto: livro “Paulo da Portela, traço de união entre duas culturas”)

 

Segundo Antonio Caetano, o primeiro bloco surgido em Oswaldo Cruz foi fundado por Paulo da Portela e se chamava “Ouro sobre azul”. Não era um bloco de samba, e sim de marcha-rancho. O samba só chega a Oswaldo Cruz através das festas religiosas na casa de “seu” Napoleão José do Nascimento, pai do lendário Natal, que contava com a presença de Dona Benedita, velha senhora que vinha do Estácio acompanhada de Brancura, Baiaco, Ismael Silva e outros bambas que estavam desenvolvendo este ritmo no morro de São Carlos. Através deste intercâmbio, o samba chega finalmente à “roça”. Assim, não demorou muito para Oswaldo Cruz se tornar um dos mais importantes redutos do novo ritmo carioca.

Muito importante também para a história do que viria a ser a Portela foi a vinda de Dona Esther para o bairro. Festeira e já acostumada a brincar o Carnaval, a casa desta senhora logo se tornaria o centro da vida social do bairro. Pelo quintal de Dona Esther passaram alguns dos maiores nomes da nossa música: Donga, Pixinguinha, Roberto Silva. Outros, como Candeia, tiveram os primeiros contatos com o ritmo que os tornariam famosos nas animadas reuniões da rua Adelaide Badajós.

Segundo o próprio Candeia, em seu livro “Escola de samba, a árvore que esqueceu a raiz”, a figura de Dona Esther sempre esteve cercada de admiração e mistério. Muitos acreditavam que esta senhora era dotada de poderes mágicos.

Verdade ou não, o importante é que dona Esther fundou um bloco muito famoso na região: o “Quem fala de nós come mosca”, um dos principais embriões da Portela.

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