21/11/2024
Crônicas PortelensesMemória

Uma família reunida

Uma família reunida

Cafofo da Surica (Foto: site Compositores da Portela)

Aquela tarde de sábado, plena da luz e do aconchego do sol deste nosso inverno, emoldurava as lembranças, que volta e meia surgem do meus tempos de subúrbio. Ainda que viva atualmente no mesmo espaço geográfico-poético do lado de cá do túnel Rebouças, por estas terras do Barão de Drummond, de Noel Rosa, de Newton Mendonça, dos Tangarás, Martinho e das calçadas musicais do boulevard, as tardes no subúrbio são outras, têm outros tons de azul.

Convite feito, convite aceito. E lá fui eu para onde sempre volto. Ainda que em agosto, sob o signo de Câncer – astrologicamente materno – uma festa de aniversário para a afilhada/madrinha Marisa Monte, sob os cuidados da pastora Surica e as bênçãos da Velha Guarda.

Festa de subúrbio, mesmo no sábado, é domingo também. É a feijoada, o caldo de mocotó, a rabada, a sopa de ervilha. Mas é sobretudo macarrão com galinha. Deliciosamente almoço de domingo, na casa da mãe. Sei lá, no domingo a gente meio que rumina, preguiçosamente. Naquele sábado não, era festa por todo o QG da resistência do samba – também abria as portas e os braços o Aconchego das Baianas da Portela, com feijoada e caldo de mocotó. E no Portelão, mais uma apresentação dos sambas concorrentes para o próximo carnaval. Era ou não era uma tarde luminosa pela Clara Nunes?

E a despreocupação, a intimidade dos que se gostam e se visitam? Tudo era simplicidade e afeto, e consangüinidade não é requisito. Cantávamos os partidos, reverenciávamos os mestres de todos os tempos. E nestes momentos, o pretérito é sempre imperfeito, inconcluso, em suspenso, eterno.

As crianças no quintal. Meu Deus, onde estão os quintais? O quintal era ali, com os vovôs e as vovós. Teresa Cristina, doce voz portelense da nova geração, molecamente entre a garotada querendo se despedir para fazer a sua apresentação em poucas horas na cidade e ninguém deixando. E o pequeno Guilherme já veterano nas rodas de samba, sob os olhares imperianos e portelenses dos pais.

Em torno da mesa, onde se comungam os prazeres do paladar, saboreava-se a mais fina iguaria musical. A nata do samba, os músicos inigualáveis, os improvisos geniais. Carlinhos Brown, papa do caldeirão de ritmos, negroíndiobranco e baiano, se rendia e se entregava à fina-flor do batuque e da poesia cariocas. Paulinho da Viola, inexplicável e intraduzível emoção, em sua sempre elegante carpintaria musical. Mauro Diniz, Noca, Colombo, Eliane Faria e todos quantos estiveram ali. Alcione prestigiando. Marisa – que me perdoem a intimidade – feliz, agradecida, sempre junto da doce Dona Eunice. Talvez nunca tenha visto tanto sorriso por metro quadrado. O bom canto, naturalmente, cantado, sem microfones, sem ruídos, sem chiados e interferências: eram o couro, os dedilhados, as palmas na mão.

As muitas gerações sem conflitos. Renovando-se, no fluir calmo e natural do tempo, sem os atropelos dos encontros eventuais em sinais fechados para o prazer de estar junto dos seus. E a cada dia que passa, a certeza se confirmando: vendo as crianças, nas atuais matinês de disputa de samba na quadra, nos sábados e domingos, fazerem das latas seus primeiros instrumentos, dando seus primeiros passos no samba, revelando e perpetuando toda uma história.

Tenho muita fé no futuro porque sou testemunha de um presente prenhe de renovação. A vida não se faz aos saltos. O homem primeiro engatinha. Aos poucos, descobre que o mundo é vasto e viver é perigoso. E com certeza poder fazer poesia.

Faço minhas as palavras do poeta porque não tenho a ourivesaria justa para o que meus olhos e o meu coração guardaram: “Portela é uma família reunida, falo de cabeça erguida com grande satisfação. A rua já lhe empresta o nome, eu também lhe dou minha canção.”

 


Autor: Rogério Rodrigues

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