29/04/2024
MemóriaPanteão portelense

Tijolo

“O maluco”

Segundo o livro “A Dança do Samba – Exercício do Prazer”, do jornalista José Carlos Rego, o nascimento da figura do passista de samba remonta à década de 40, quando o compositor Herivelto Martins resolveu criar no palco o que chamava de “mini-escola de samba”, composta por seu coro feminino e um pequeno grupo de percussionistas. Mas a ideia de incluir a dança nos números do conjunto não foi pacificamente aceita: com as mulheres, tudo bem; mas com os homens, ficou difícil.

O caso é que, até então, o samba dançado em solo, no meio da roda, era “coisa de mulher”. Como contou Herivelto em entrevista a José Carlos, a ideia foi muito mal recebida entre seus sambistas. Claudionor da Portela se aborreceu, parou de bater o pandeiro e se afastou do ensaio – narrava ele. Bucy Moreira, de muita liderança no grupo, ficou pensativo, mas não disse nada. Mas, no terceiro espetáculo, veio a surpresa: o ritmista Tibelo, no meio da apresentação, deixou o tambor e arriscou umas invenções com os pés. O público, apanhado de surpresa, primeiro começou a rir, mas aos pouquinhos soltou os aplausos. Incentivado, Tibelo ampliou a variedade de passos e o público veio abaixo.

Alexandre de Jesus nasceu no bairro carioca de Botafogo e passou boa parte da infância entre os subúrbios de Bento Ribeiro e Oswaldo Cruz. Quando era criança vendeu amendoim, balas, frutas e jornais no trem. O apelido Tijolo veio desse período. José Carlos Rego conta essa história: “Existia nos bairros da periferia do Rio quem apreciasse o gato como iguaria à mesa. Ele se distinguiu, então, por acertar os felinos a tijoladas, negociando a carne para a panela de uns, e o couro para os instrumentos de percussão de outros”.

O samba deu fama a Tijolo, levando-o a percorrer o mundo. Entretanto, na década de 50, Tijolo não era bem visto na quadra de ensaios da Portela, ao querer se impor como solista em meio ao coletivo das alas. Acabava sempre sendo colocado para fora pela direção de harmonia. É que naquela época não existia a figura do passista. O solo na coreografia do samba, naquela época, não era levado aos desfiles. As alas, as baianas e o corpo da escola eram preparados no sentido de dançar evoluindo para a frente, em função de compor bem a harmonia. Quando o arranjo melódico do samba permitia, realizavam-se movimentos sinuosos, como as formas em “s”, isto é, a coreografia da cobrinha.

Em 1958, Carlos Machado – o Rei da Noite – decidiu introduzir elementos das escolas na revista musical “Million Dolar, Baby”, que iria ao palco da boate Night and Day, na época a mais luxuosa da Capital Federal. O musical era réplica tupiniquim do filme “Volta ao Mundo em 90 Dias”, sucesso mundial de bilheteria. Para esse musical foram recrutados sambistas na Mangueira, no Império Serrano, no Salgueiro. Da Portela convocaram os rapazes da Ala dos Impossíveis, onde despontavam Candeia, Waldir 59, Mazinho, Quincas e outros. Eles mostraram as coreografias que exibiam nos desfiles. Mas nada atendia ao que Carlos Machado desejava. Quando ele, cansado de experiências, conseguiu explicar que o que desejava era uma síntese, Waldir 59 explodiu: “Se é assim, só se a gente trouxer o maluco!”. Maluquices eram expressões corporais que Tijolo insistia em impor nos ensaios da Portela. Elas caíram como luvas no palco.

A presença de Tijolo na revista de Carlos Machado repercutiu intensamente no universo do samba. E a repercussão do fato de um sambista destacar-se na noite viria a abrir espaço para uma nova configuração nos desfiles: a presença do passista. E foi a partir do sucesso e da criatividade de Tijolo no palco que a figura do passista foi institucionalizada, descendo do “music hall” para a avenida, num inusitado percurso. – Com o sucesso na boate, na Portela deixei de ser o maluco e virei medalhão. Pude me impor e, ai, meu Deus do céu, pude ir para o centro da quadra como solista e exibir o que quisesse. A direção de harmonia não me expulsava mais. Aplaudia. – relembra Tijolo.

Na inauguração da primeira sede da Portela, em 1960, marco na história das escolas de samba como representação civil, Tijolo exibiu-se para o governador Carlos Lacerda e a comitiva de Jânio Quadros, na ocasião candidato a Presidente da República. De tal forma distinguiu-se que, no ano seguinte, o governador se lembrou dele. É que a Prefeitura de Recife propusera a realização de um confronto frevo versus samba e lá se foi Tijolo representar o Rio no Baile do Galo, no Teatro Municipal da capital pernambucana, no sábado de carnaval.

Das emoções que mais o gratificavam, Tijolo destacava dois fatos marcantes em sua vida. Em 1973, já encerrada a carreira de passista, foi coordenar o setor de criança na Portela. Certa tarde de domingo, ensaiava os meninos na quadra do Portelão quando por lá apareceu a figura de Antônio Rufino dos Reis, sócio nº 2 da escola (o nº 1 foi Paulo da Portela), já septuagenário mas lúcido. Tijolo determinou às crianças que a ele apresentassem as homenagens de praxe. A porta-bandeira mirim trouxe o pavilhão para o beijo e os melhores passistas se exibiram, sempre encerrando os números com a cabeça abaixada em reverência ao velho. Encerrada a mostra, emocionado, Rufino dirige-se a Tijolo para urn abraço e segreda-Ihe: “O Paulo tinha razão, agora você é o professor, está no lugar dele”.

A mensagem foi recebida com incompreensão, mas logo Rufino explicaria. Lembrara-se que em 1939 a Portela apresentou o enredo “Teste ao Samba” e, num certo trecho do cortejo, Paulo da Portela aparecia como o mestre encenando dar aula a um grupo de meninos, os aprendizes do samba, estes fantasiados de escolares.

– Eu era um deles – conta Tijolo – ao lado de Quincas, Gastão, Darci, Candeia, Waldir 59, Siloca Baloeiro. E ali, no Portelão, 34 anos depois, “seu” Rufino contou que Paulo, olhando o grupo, apontou-me e lhe disse: esse aí leva jeito. Para o passista, não houve em sua vida instante de maior emoção. As palavras daquele pioneiro da cultura do samba caíram-Ihe, segundo diz, como um diploma sem moldura.

Levado pelo jornalista Sérgio Cabral, que atendia a um pedido de Tereza Aragão, a primeira diretora das Noitadas de Samba naquela casa de espetáculos, em 1964 o passista estreava no teatro, que nos anos pós-revolução se transformaria no traço de união entre intelectuais e várias fontes de cultura popular. – A convivência com o pessoal do Teatro Opinião, entretanto, mudou tudo em minha vida. Ela me completou como cidadão – acrescenta Tijolo.

Sapato de couro, salto carrapeta e meias brancas, cano longo até quase os joelhos. Calça azul, camisa branca de mangas compridas e colete azul. Passava pela avenida levantando aplausos do público. Tijolo, Tijolo, Tijolo!, gritavam à sua passagem. Inusitado, harmônico, gracioso, ele era a alegria do público que lhe gritava o nome. Era, também, ansiado pelos fotógrafos que registravam os desfiles dos anos 60. Para chegar àquele conjunto de coreografias, Tijolo confessa terem sido diversas as suas fontes de inspiração. A maioria delas, contudo, assimiladas no cinema.

Tijolo encerrou sua carreira como passista no carnaval de 1970. Foram muitos, mas muitos mesmo os apelos e cobranças para que ele retornasse. Ele dizia: “O aquele (essência espiritual) do passista tinha ido embora naquele carnaval de 1970”.

Tijolo faleceu em 6 de setembro de 2001.

Fonte:

A Dança do Samba – Exercício do prazer, José Carlos Rêgo.

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