15/05/2024
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Alvaiade

ALVAIADE

“O dia se renova todo dia

E eu envelheço cada dia e cada mês

O mundo passa por mim todos os dias

Enquanto eu passo pelo mundo uma vez”

 

Esses versos retratam toda a força da poesia popular. A beleza na simplicidade das palavras, que filosofam sobre a natureza e a existência humana. Esse é o artista popular. Não precisa fazer citações complexas, muito menos utilizar vocabulário rebuscado, basta apenas saber expor seus sentimentos. 

Oswaldo Silva, mais conhecido como Alvaiade, era assim. Seu talento não foi aprendido nas cadeiras de uma faculdade; era natural. Suas composições expressam toda a riqueza da sabedoria do povo. Sabedoria que, a despeito do que pensam muitos intelectuais, também interpreta o mundo que está em sua volta. O que podemos contestar desses versos acima citados?

Alvaiade foi um dos principais compositores da história da Portela, mas sua contribuição para a escola não se limitou à criação de versos e melodias. Alvaiade foi uma grande liderança. Um líder que, mesmo ainda jovem, gozava da total confiança de Paulo, seu substituto natural após o afastamento do mestre.

Fincou suas raízes na Portela logo após sua fundação, atravessando os anos como um de seus principais símbolos. Seus últimos dias foram como integrante do conjunto da velha guarda show, de onde só saiu para fazer parte da galeria dos grandes sambistas imortais, onde Alvaiade viverá para toda eternidade.

 

O filho de Oswaldo Cruz

Alvaiade nasceu no dia 21 de dezembro de 1913, na Estrada do Portela, em Oswaldo Cruz. Se muitos dos primeiros portelenses vieram das regiões urbanas do Centro da cidade ou das zonas rurais do interior do sudeste, Alvaiade já nasceu no subúrbio. Integrava o “bloco da rua B”, em companhia de Alvarenga e outros, e em 1928 ingressou na Portela, quando os sambistas da atual Rua Ernesto Lobão se solidarizaram com o então “Conjunto de Oswaldo Cruz”, unindo forças em prol do sucesso da comunidade. No início, o jovem Alvaiade apenas tocava cavaquinho, somente depois seu telento de compositor se revelaria.

 

O respeito de Paulo

Alvaiade recebeu um convite pessoal de Paulo para ingressar no “Conjunto”. Quando o mestre não poderia estar presente, era o jovem Alvaiade, com todo o seu espírito de liderança, quem respondia pela Portela em seus primeiros anos. Sempre elegante e educado, Alvaiade tinha a postura que o fundador principal da Portela reconhecia como ideal para o sambista, imagem que Paulo cultivava em sua própria personalidade. Por esse respeito que despertava ainda jovem, Alvaiade desde cedo se tornaria uma espécie de porta-voz da Portela. Um nome que se consolidou como sinônimo de dignidade.

 

Substituindo o mestre

No episódio que culminou no afastamento de Paulo da escola, em 1941, Alvaiade explica que as decisões, muitas vezes tidas como unilaterais de Manuel Bambambã, o valentão do grupo, foram tomadas de comum acordo entre todos os membros da diretoria. Explica ainda que Paulo poderia desfilar com qualquer roupa, mas Cartola e Heitor só depois que a agremiação passasse pela comissão julgadora, para que não perdesse preciosos pontos que poderiam custar o campeonato.

Alvaiade foi a voz que falou em nome da Portela quando, dias depois, Paulo apareceu na quadra acompanhado do pessoal da Mangueira. Vendo que a briga entre os portelenses e Paulo era inevitável, o jovem líder, com a mesma dignidade que aprendera com o mestre, procurou contornar a situação, mas sem sucesso.

Paulo deixava a Portelinha cantando um samba da Mangueira, e Alvaiade puxou outro em resposta ao mestre:

“Seja feliz com o seu novo amor

Porque eu vou procurar o meu bem-estar

Pode arranjar quem você quiser

Só peço pra de mim esquecer, mulher”

Alvaiade passava, então, a ser o principal líder portelense.

 

Tipógrafo e atleta

Em sua vida particular, Alvaiade exerceu a profissão de tipógrafo. O samba, infelizmente, não era para nossos primeiros sambistas fonte de renda, era antes de tudo um prazer, uma vocação que os artistas deixavam transparecer nas animadas rodas de amigos. Alvaiade também foi atleta, e foi no esporte que viu surgir seu nome artístico. Tinha no futebol uma de suas grandes paixões, ocupando a difícil posição de goleiro com a mesma dignidade que demonstrava à frente do conjunto portelense.

 

Chefe de conjunto

Por quase 20 anos, Alvaiade foi chefe de conjunto da Portela. Era o responsável pelos ensaios e pela direção de harmonia, pondo em prática seus conhecimentos sobre as funções de cada segmento da escola. Alvaiade foi o principal responsável pela organização da Portela em vários de seus compeonatos. Era também o responsável pela recepção das visitas e pelas idas da escola a outras agremiações.

 

Presidente da ala de compositores

Como presidente da ala de compositores da Portela, Alvaiade sempre procurou zelar pelos interesses daqueles que são responsáveis pela reconhecida qualidade dos sambas que a escola apresentava. Foi através dele que nomes famosos como Manacéia, Valter Rosa, Chico Santana e muitos outros foram lançados.

Certa vez, Alvaiade determinou que cada compositor poderia escrever apenas um samba de quadra. Um dia Chico Santana o procurou dizendo que havia um segundo samba. Mesmo quebrando o protocolo, Alvaiade teve sensibilidade para perceber a beleza da composição do amigo, que ficaria esquecida se suas ordens fossem levadas ao pé da letra. Aberta a exceção, surgia o samba que hoje é considerado o hino oficial da Portela.

A liderença incontestável de Alvaiade esteve muito além dos limites de Oswaldo Cruz e Madureira. O compositor portelense foi um dos fundadores da União Brasileira dos Compositores, que nasceu para resguardar os direitos da categoria.

 

Velha Guarda Show

Com a criação do conjunto da Velha Guarda Show, Alvaiade emprestaria sua liderança espontânea para ajudar na organização do grupo. Muitos dos primeiros sucessos do conjunto tiveram a assinatura de Alvaiade, como “O que vier eu traço”, Marinheiro de primeira viagem”, “Banco de réu” e “Embrulha que eu carrego”. Até hoje, sambas praticamente inéditos do compositor aparecem nas gravações dos sambistas portelenses, que fazem questão de resgatar a memória dos amigos que já se foram. Alvaiade, assim, na voz dos eternos companheiros, continua fazendo sucesso.

 

Raízes da Dignidade

Alvaiade faleceu no dia 23 de junho de 1981. Era uma segunda-feira, mas uma greve dos funcionários da Santa Casa, onde o portelense estava internado, fez com que apenas na quinta os familiares fossem avisados.

No fim de sua vida morou em Marechal Hermes, mas nunca deixou de freqüentar a Portela e Oswaldo Cruz. Suas raízes estavam ali fincadas. Raízes de uma vida marcada pela dignidade e pelo espírito de liderança. Seja nas belas composições, como as de 1942, 43 e 47, anos em que a Portela sagrou-se vitoriosa na avenida, ou nos trabalhos de organização da escola, como diretor de harmonia ou chefe de conjunto, Alvaiade foi, talvez, o principal responsável por muitos dos títulos da Portela, mesmo que nem sempre tenha recebido o devido reconhecimento.

Filho de Oswaldo Cruz, sua história se confunde com a própria história da Portela. Inspirado nos ensinamentos de Paulo, exerceu sua liderança por onde passou, contribuindo para o sucesso de nossa escola e do carnaval carioca.

 

“O mundo é assim”

O mundo é realmente assim, não podemos negar.

“A natureza é perfeita, não há quem possa duvidar

A noite é o dia que dorme, e o dia é a noite ao despertar”

É no acordar e no despertar da noite e do dia que seguimos nossas vidas. Passamos pelo mundo apenas uma vez, enquanto o mundo passa por nós todos os dias. Assim, envelhecemos a cada dia, a cada mês. Alvaiade passou pelo mundo apenas uma vez, é verdade, mas de forma tão intensa que ainda hoje sentimos sua presença passando pelo mundo todos os dias.

Na sucessão dos dias e das noites, vemos novas crianças nascendo. São essas crianças que um dia nos sucederão quando nossa única passagem pelo mundo chegar ao fim. O “mundo é assim”.

 

Pesquisa e criação de texto: Fábio Pavão

Bibliografia:

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. Lumiar, 1996.

VARGENS, João Baptista M & MONTE, Carlos. A Velha-Guarda da Portela, Rio de Janeiro, Manati, 2001.

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