15/05/2024
Crônicas PortelensesMemória

Com os olhos da primeira vez

Com os olhos da primeira vez

Tempos idos, tão presentes, quentes, no compasso do arrastar dos sapatos, zumzumzum do vozerio, gargalhadas, guizos, o chilfo do tafetá, vagalumes de paetês, espelhos, pedrarias, a turba e o turbante, o cantante, o rodante. Era noite.

No maravilhamento de criança, os vizinhos eram príncipes com espada e lamês, botas, chapéus emplumados. E eram índios, amazonas. Uma corte inteira, uma nação era o que eu habitava e não sabia que era um país encantado. Para onde iam? E nem desconfiava que a escritura do meu caminho fora lavrada ali.

Morava na travessa Vitalina, mais conhecida como buraco. Achava estranho esse nome, pois achava que buraco não tinha fundo e era escuro. Duas ladeiras conduziam para o alto, de um lado a outro. E a escuridão era a noite, e a parca iluminação que vinha das lâmpadas encimadas por cúpulas que mais pareciam flores, em seu verde externo.

Era o tempo dos verões nas ruas de barro, do contar histórias de casas mal-assombradas, da velha da esquina que era louca. E víamos estrelas cadentes e brincávamos de carniça, polícia e ladrão, queimado, puxávamos carrinhos feitos com latas de leite em pó, trespassados por arame ( o eixo! ), cheios de pedras ou areia para dar estabilidade. Éramos engenheiros mecânicos, aeronautas – as pipas e o ignorar as leis da física.

As bolas de gude, a búlica. Como era imenso o meu país. Alegre e mágico.

O suor colava as dobras do pescoço – e que importava aquilo! Depois sabíamos a hora do banho, o talco, o jantar, o lençol branco iluminando a nossa humildade.

Oswaldo Cruz era o meu país. E dentro dele havia aquele derramar de sons e cores. E mal esperávamos para chegar a manhã pra sentir medo de bate-bola, de diabo, gorila, carrasco. E como eram divertidas as negas-malucas, os pais-joão, homem vestido de mulher, mulher de gravata e camisão, times inteiros de futebol. Era o tempo dos sarongues, dos pareôs, das havaianas, das baianas! Onde foram parar?

O pulo da cama e no rádio ecoavam as marchinhas. Cadê?

Era um pique só: o café-com-leite, o pão com manteiga e rua. Meu coração disparava, a excitação e o medo, sem saber o que iria encontrar na esquina. Era pôr o pé na rua e o meu irmão mais velho fechava o portão só pra ter o prazer de ver a gente levar a bexiga na perna ou língua do diabo no braço. Quanta maldade.

Meu índio já estava pronto. Ainda se fazia em casa, com as penas do aviário próximo, morim, costura e cola. Era inevitável a repetição. E era azul e branco. Desconfio que aqueles índios eram americanos, pois sempre tinha que colocar tiras de esparadrapo nas bochechas e machadinhas na mão. Estava pronto para a matinê no Social Atlas Clube. E a volta era um desconsolo. Após tantas voltas em torno do salão e eu era um pássaro depenado. Talvez fosse castigo pela maldade com as galinhas.

Os dias corriam – e muito rápido. E era terça-feira gorda. E não conseguia entender por que não tinha clube. “Vamos ver o carnaval na Estação.”

Era o coreto, a banda, a fita com os sambas, os fogos…

Era o falatório: chegou a Portela! E começava: a vibração, o canto, o sorriso no rosto e a compenetração que as coisas sérias exigem. Não tinha corda, nem tapume, muito menos arquibancada. Éramos iguais na diferença. Todo mundo ali era especial: desfilavam na Portela. Que escola rica, meu Deus! E aquela exaltação.

Terminados o canto e o batuque, calmamente, em seus lugares, começavam a caminhar. O apito surgia no ar para conduzir aquela massa. E todo mundo atrás. A Carolina Machado ainda nem existia pra mim. Sabia que era uma rua, escura, as estrelas lá no alto, o arrastar dos sapatos, zumzumzum do vozerio, gargalhadas, guizos, o chilfo do tafetá, vagalumes de paetês, espelhos, pedraria, a turba e o turbante, o cantante, o rodante. Era noite.

O destino era Madureira. “Lá vem Portela!!!” Os fogos anunciavam. O Império já passara. E a multidão aglomerada ao longo da Edgard Romero, o coreto, todos aguardando, cantando e seguindo aquela imponência.

Acabara o carnaval. O trânsito sendo aberto, os últimos foliões, os que teimavam em prolongar a festa.

Minhas lembranças são mosaico de anos misturados, em cuja essência mergulhei para nunca mais sair.

Descobri minha verdade, disfarçada de discreta paixão.

Hoje sei a alegria e a dor do amor. Cresci, insistindo na fidelidade do primeiro amor, porque pra sempre.

Descobri que a Portela e Oswaldo Cruz são a mesma geografia. São o meu país.

 


Autor: Rogério Rodrigues

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