15/05/2024
Crônicas PortelensesMemória

Construindo sonhos

Construindo sonhos

Abre Alas de 1987

Assistir à monumentalidade do espetáculo das Escolas de Samba, sobretudo pela televisão, talvez seja guardar algo de misterioso que pode permanecer para sempre. Talvez como sonho, talvez como desejo de conhecer de perto aquele estranhamento, comum às paixões avassaladoras. E também para entender como pode ser possível tal sincronia, gigantismo, beleza, alegria, êxtase. Que força faz convergirem pessoas desconhecidas, tão diferentes na origem, para a ritualidade da alegria, do puro prazer estético e sensual?

Nada nasce pronto – o que pode parecer um chavão. Mas acaba por traduzir o que venha a ser a realidade das Escolas de Samba. O longo processo de gestação de um desfile: a concepção do tema/enredo, a elaboração do roteiro, a distribuição da sinopse para os compositores, a confecção dos figurinos e carros, a composição dos sambas, as eliminatórias, a escolha final. O canto com que será vista e eternizada nas memórias, nos compêndios, nos periódicos. Acredito que seja o grande momento de uma Escola antes do desfile.

Mas, para quem deixou crescer aquele estranhamento, decidir desfilar é um desafio tão perturbador quanto uma conquista amorosa. Ansiedade, mãos suadas, palpitações, insegurança. A começar pela escolha… da fantasia. Considerar preço, beleza, conforto e condições de pagamento não é tarefa para mortais. Entre hesitações, decide-se: “vou desfilar!” E fica aquela sensação de tempo que não passa.

E se abre um mundo novo: a concentração! Os carros inanimados ainda, os últimos retoques, os personagens, os artistas, as modelos-manequins-atrizes, os jogadores de futebol, o compositor da velha guarda, a baiana, os passistas, os componentes de alas.
Saio na Minha Escola: não sou anônimo, sou um conto de areia, que recebe e beija o mar em azul. Aguardo nervoso transformar-me em ondas, ser movimento, ser Portela. Saímos da Presidente Vargas e viramos a Sapucaí. As luzes, a bateria, o arrastar dos sapatos, o canto, os gritos, palmas. Ainda era noite. O transe.

Subtraído dos sentidos, encontro-me sob um céu entre o púrpura, o dourado e o azul. Voam ventarolas, “clareou, é do infinito!” O inusitado daquele colorido emociona, arranca a verve adormecida, “faz feliz o coração…” Tinha a certeza de que tudo seria diferente a partir daquele momento.

Busquei um pouco mais: conhecer a história da minha Escola, saber dos pioneiros, freqüentar a quadra e ser um artesão de um sonho sonhado há muito por gente tão simples, que apenas quis fazer um carnaval que fosse próprio, do bairro, da família.

Hoje, sei que ajudar a fazer um chapéu, decorar um resplendor, fazer um acabamento é dar continuidade a uma tradição. Entoar o samba que vai disputar o título, lembrar de outros sambas memoráveis, de desfiles injustiçados, comungando com aqueles que fazem o trabalho por amor – sim, ainda existem os que trabalham além da sobrevivência – é ter o cheiro e o gosto do pão com mortadela e guaraná certos do luxo que é fazer algo com prazer. É suportar o calor infernal do nosso verão carioca, e esperar a enchente baixar pra poder ir embora; é agüentar o sol nas tardes de domingo, ensaiando na rua; é ver o sonho tornar-se fantasia.

Sempre quis fazer parte desta família. E até sabia que poderia. Conhecer outros irmãos e irmãs, sentir algumas contrariedades, mas, nunca, abrir mão da emoção de rever a minha quadra, a minha Águia, a minha gente.

Ainda não senti o gosto de ser campeão, mesmo nascido campeoníssimo. Mas, não há de ser nada. Continuo sonhando. Cronicamente sonhador.

 

Autor: Rogério Rodrigues

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