O dia que a Portela rejeitou Natal
O dia em que a Portela rejeitou Natal
Incêndio no barracão da Portela, União da Ilha e Grande Rio em 2011 (Foto: Agência Estado)
Quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011. Visivelmente chateados, os portelenses chegam para o primeiro dia de ensaio após o fatídico incêndio que destruiu o ateliê da escola. Enquanto as baianas participavam de uma matéria para a televisão, os componentes da comunidade conversavam sobre o ocorrido. Depois de meses ensaiando, encaravam a realidade de desfilar sem fazer parte da disputa. O sonho de ser campeão ou, simplesmente, passar novamente na Sapucaí no desfile das campeãs, havia sido consumido não pelo fogo, mas pela decisão que horas depois excluía a Portela da competição. Aos poucos, seguindo as ordens do locutor, se dirigiram para o centro da quadra. Ainda estavam cabisbaixos, ressabiados, talvez se perguntando por qual motivo ainda precisavam ensaiar. Em silêncio, ouviram o presidente justificar a decisão. Ouviram seus pedidos para que a comunidade desfilasse com garra. Ouviram que a escola precisava se unir para enfrentar este momento difícil. Ouviram tudo com bastante atenção e, juntamente com o rufar da bateria, vibraram externando todo o amor pela Portela. Na alquimia de sentimentos que só o carnaval é capaz de produzir, a tristeza havia se transformado em garra e determinação.
Seguindo a voz do intérprete, cantaram como se quisessem mostrar que estavam vivos. O fogo pode ter queimado seus sonhos, mas jamais o amor que sentem pela escola. Muitos choraram ouvindo “Portela na avenida”, “Contos de areia” e, finalmente, o samba de 2011. A emoção contagiou os diretores de harmonia. Empolgados, vibraram tanto quanto os componentes. Os ritmistas tocaram com toda a força. Uma águia é levada para o meio da bateria e, bailando sobre os componentes, o símbolo da Portela representava a superação diante do infortúnio. Sem dúvida, tudo muito emocionante, mas, neste dia em que o amor portelense aflorava, faltava alguém. Faltava alguém que, mesmo depois que partiu para o olimpo azul-e-branco, sempre esteve presente em espírito, orientando os passos de seus filhos, ajudando a conduzir a escola para a vitória há muito não alcançada, mas jamais ignorada e desprezada. Faltava o velho Natal, seus exemplos e ensinamentos. Ao longo de sua gloriosa história, os portelenses herdaram de seus baluartes características marcantes de sua personalidade. Se com Paulo ele herdou valores como a educação, a elegância e a organização, com Natal o portelense aprendeu a importância de jamais fugir da luta, mesmo que esteja em desvantagem. Com Natal, o portelense aprendeu que encarar os desafios faz parte de sua essência, e que a disputa digna e leal é fundamental para o carnaval. Neste momento difícil para a Portela, ele precisava voltar.
Volta, Natal, volte e retome o seu lugar. Volte para guiar novamente o seu povo. Volte naquela trágica manhã de segunda-feira e, com a sua sabedoria, ajude a Portela a reencontrar a dignidade. Diante da sua presença, nos escombros da cidade do samba a porta-bandeira vai erguer um pavilhão coberto de cinzas, mas vai girar com uma vontade e uma determinação tão grande que todos perceberão a força daquele símbolo. A fuligem vai se espalhar pelo ar, formando uma nuvem impotente diante da verdadeira garra azul-e-branca. Ensine para os jovens portelenses de hoje o que realmente significa a palavra superação. Diante da dor, peça para um passista sambar com a destreza de uma águia, e, com um sorriso no rosto, diga que sambando desta forma ele não deve temer ninguém na avenida. Diga, Natal, que apesar das dificuldades, uma baiana da Portela tem que rodar pensando sempre em alcançar a vitória, jamais simplesmente para brincar o carnaval sem compromisso. Você jamais admitiria isso na sua Portela, Natal, então volte e mostre para os meninos da bateria o que mestre Betinho faria. Volte e diga para todos que precisam ouvir que você jamais admitiria que a Portela, faltando um mês para o carnaval, entregasse os pontos e desistisse da competição.
Neste primeiro ensaio após o incêndio, o espírito de Natal não estava presente. Os portelenses se emocionaram, choraram e vibraram, mas esqueceram dos ensinamentos e do exemplo de Natal. Ele era apenas um busto de bronze, esquecido na entrada social fechada. Certamente ele ficaria orgulhoso da garra e da vontade dos componentes da comunidade, mas, com certeza, ficaria envergonhado diante da covardia de não tentar, ao menos tentar, entrar na avenida de forma competitiva. Depois da tragédia, este dia 9 de fevereiro de 2011 será eternamente lembrado pelos portelenses como o dia em que a Portela começou a superar o momento mais difícil de sua história. No entanto, ao mesmo tempo, para quem conhece de fato a história da escola, ao ter se conformado passivamente em não participar da disputa e nem ser julgada, este será, também, o dia em que a Portela rejeitou Natal.
Dirão alguns, não sem uma certa dose de razão, que o carnaval mudou. Colocar uma escola de samba na avenida é uma tarefa bem mais complexa nos dias de hoje, certamente alguém está pensando. De fato, o carnaval mudou, tanto que a Portela acumula décadas sem títulos, algo impensável na época de Natal. Todavia, são os exemplos e os ensinamentos de seus mestres que mantém a escola viva e faz tantos jovens se apaixonarem por ela. Natal correria atrás, se superaria, contrairia dívidas, terceirizava a confecção das fantasias se fosse necessário, buscaria material no outro lado do mundo, mas colocaria a Portela competitiva na avenida. O carnaval moderno mudou as escolas de samba, mas não acabou com a dignidade. A verdade é que Natal não esteve presente, nem fisicamente e nem em espírito, neste primeiro ensaio após o incêndio. E também não estará no carnaval de 2011, quando sua escola passar pela avenida sem disputar. Este também será, infelizmente, mais um dia em que a Portela rejeitará Natal.
Autor: Fábio Pavão