12/05/2024
IntérpretesMemóriaPanteão portelense

Clara Nunes

Clara. Clara Francisca. Clara Nunes. Clara Mineira, Guerreira e Sabiá.

Clara, claridade que como um feixe de luz iluminou nossas vidas. Saudosa lembrança clara, como o sonho de quem sonha viver o próprio sonho.

Clara, clara como o sol, clara como a lua, clara como a natureza é clara, como as águas são claras e puras. Clara como a vida.

Pés descalços na terra molhada, cabelos ao vento. É Clara junto ao seu povo. Povo simples do interior de Minas, povo humilde do subúrbio do Rio, povo dos terreiros e dos candomblés, povo guerreiro do Nordeste. Povo do Brasil.

Clara Mineira. Clara Guerreira que venceu as batalhas da vida. Clara Sabiá que cantava por amor.

Clara como a paz, Clara como a alegria que nos ensinaste. Tão clara, quanto a Saudade que ficou.


Nasce a menina Guerreira

É fantástica a exuberância das forças da natureza. É cheiro de mato. É terra molhada. Lá vem trovoada. Era dia 12 de agosto de 1942. Na pequena Cedro, distrito de Paraopeba, hoje Caetanópolis, Minas Gerais, vem ao mundo a menina Clara Francisca. Na terra, sétima filha do serrador Manuel Araújo e Amélia Gonçalves. Na religião, filha de Ogum e Iansã.

O céu. As estrelas. Os mistérios do Universo. O violeiro Mané Serrador se fantasiava de Rei Mago nas comemorações das folias de reis. Ao contrário da tradição bíblica, não precisou seguir o sinal divino, pois a estrela a ele estava destinada. Cantor de modinhas populares, representante da cultura do povo simples e humilde do interior, seu Manuel inspirou o imaginário de sua pequena Clara durante toda sua vitoriosa carreira, mesmo o tendo conhecido tão pouco. Ainda criança o Orixá maior chamou seus pais. A pequena Clara seria criada por uma de suas irmãs, a Dindinha. A vida impusera para a jovem inúmeras adversidades, mas Clara tinha ao seu lado as forças da Natureza, do destino, do amor.


Tecendo para viver

Os anos passam, sucedem-se as estações. Calor, frio, secas e tempestades. Aos 14 anos Clara começa a trabalhar como tecelã de uma fábrica. Mesmo depois que mudou-se para a capital, era por meio desse ofício que tirava seu sustento. Mas aos poucos foi seguindo seu verdadeiro caminho, conhecendo sua missão. Clara transmitiria sua mensagem através da música, cantaria a natureza, cantaria o amor.


O dom da música

O ar. Elemento fundamental para a vida. Os ventos. A serenidade das brisas e a potência dos furacões. Os pássaros bailam no ar, brincam no infinito, e por isso cantam a liberdade. Ainda aos 10 anos Clara descobre o dom de cantar. Vence um concurso em sua pequena cidade cantando “Recuerdos de Ypacarí”, ganhando como prêmio simplesmente um vestido azul. A partir de então, Clara acumulou vitórias nos concursos que eram organizados em Paraopeba. Clara descobrira que era muito mais que uma menina. Transformara-se num sabiá. Um sabiá que pregaria a natureza, que difundiria o amor.


Clareando Belo Horizonte

O amanhecer. O sol nascendo por trás das montanhas. A Claridade da lua ofuscada pelo brilho do astro-rei. Em 1958, Clara vai morar com a irmã Vicentina em Belo Horizonte. Jadir Ambrósio, famoso compositor mineiro, se rende à doce voz da menina. É levada por Jadir que Clara participa de seus primeiros programas de rádio, ainda como Clara Francisca, seu nome de batismo.

O anoitecer. O sol novamente desaparece no infinito. Mais uma vez a claridade da lua volta a ser percebida. Em 1960, Clara Francisca já era conhecida por Clara Nunes, adotando um sobrenome da mãe. Cantando Vinícius de Moraes, aos 18 anos vence a fase mineira do concurso “A voz de ouro ABC”. Na fase nacional, Clara fica em terceiro lugar. Sua voz já era conhecida em Minas Gerais.

A manhã. A tarde. A noite. Três partes de um mesmo dia. Tão distantes, mas também tão próximos. Clara assinou contrato com a Rádio Inconfidência, trabalhou como crooner em boate, teve Milton Nascimento como baixista, percorreu todo o estado, passou a ter seu próprio programa ao vivo, na TV Itacolomy, recebendo nomes como Ângela Maria e Altemar Dutra. Nas Gerais todos já conheciam e admiravam Clara. Mas ela queria mais. Aceitou o desafio de largar tudo e recomeçar novamente. Dessa vez para ser conhecida pelo Brasil. Queria cantar para todos o amor.


Pousando no Rio de Janeiro

A chuva. O sol. A terra. A força dos temporais e a energia dos relâmpagos. A Natureza em comunhão. E o sabiá alçou vôo de Minas e pousou no Rio de Janeiro. Na Cidade Maravilhosa, Clara faz teste na gravadora Odeon e é aprovada. A primeira dificuldade seria escolher um estilo. Um ano depois lança o LP “A voz adorável de Clara Nunes”, com um repertório formado por canções românticas.

Os rios. Os mares. A água que transforma as pedras, deixa suas marcas com a ação do tempo. Recomeçar era difícil, mas Clara não esmoreceu. Morava em Copacabana com outras cinco amigas, confiava em si, confiava na força da natureza, na força do destino. Graças a uma das amigas, também divulgadora de sua gravadora, começa a aparecer nos mais diversos programas de sucesso nas rádios e na televisão, como Jair Taumaturgo, Chacrinha, Almoço na TV e outros. Ganharia a imagem de cantora de festival, seria assim rotulada nos próximos LPs, começava a aparecer no Brasil, e ao país começava a demonstrar seu amor.


Cantando o povo

Pés descalços na terra batida, geralmente seca. Seca pelo calor dos terreiros ou dos subúrbios. Seca como a vida do povo. Após uma viagem a Luanda, Clara decide se aproximar das verdadeiras raízes brasileiras. Resolve cantar o Brasil. Percebe a diversidade, reconhece que só assim se aproximaria da população simples. Ela mesma, menina humilde do interior, filha de um serrador que na melhor tradição popular era rei Mago. Esse era o país de Clara, que agora encontrara seu destino. Sua missão era cantar o Nordeste, o Sul, o Norte, cantar o que fosse do povo. O radialista Adelzon Alves passa a produzir seus discos, que finalmente passariam a retratar sua terra, sua gente, a natureza e o amor.


Abrindo as portas

Mulher. Mulher que tem a graça de dar à luz. Luz que traz a claridade. A relação com Adelzon a levou para os programas que o radialista mantinha nas madrugadas, que contava com a participação de grandes sambistas. Clara vence barreiras, quebra tabus, nunca uma mulher teve um disco incluído entre os mais vendidos. Clara foi a primeira; “Alvorecer” vendeu 300.000 cópias, abrindo as portas para outras artistas que já faziam sucesso, como Dalva de Oliveira, Maria Bethânia e Elis Regina. “Claridade”, lançado em 1975, já saiu com 500.000 cópias vendidas. O sucesso já tinha sido conquistado.

Terra. Elemento da natureza. Terra que dá o pão, alimento para a vida. Clara participou de espetáculos como “Sabiá Sabiô”, “O poeta” e “A moça e o violão”, mas foi em 1974, com “Brasileiro, profissão esperança”, ao lado do consagrado ator Paulo Gracindo, que veio o sucesso absoluto, mantendo o show em cartaz por mais de um ano. Clara foi a primeira cantora a inaugurar seu próprio teatro a partir de seu próprio esforço, o Teatro Clara Nunes, em maio de 1977, no Rio de Janeiro. O show de estréia foi “O canto das três raças”, dirigido por Arlindo Rodrigues. Até hoje os antigos sócios de Clara mantêm o espaço em atividade, recebendo artistas das mais variadas origens e estilos. Clara foi uma pioneira entre as mulheres, mulheres que são sinônimos de amor.


O companheiro

O fogo. Elemento fundamental. Fogo das paixões. Chama que arde, queima, ilumina. Felicidade. Em 1975, Clara se casa com o compositor Paulo César Pinheiro, que produziria seus discos a partir de “Canto das três raças”, lançado em 1976. Alguns de seus maiores sucessos tiveram a assinatura de seu marido, produtor e companheiro, pessoa a quem dedicaria pelo resto da vida o amor.


A Águia e o Sabiá

Sol e lua. Os dois não são opostos, são complementares. A Portela tem em sua formação uma significativa presença dos elementos típicos do mundo rural, trazidos pelo povo simples do interior, sobretudo do interior de Minas, terra de Clara. Nada mais natural que a gloriosa escola da Águia altaneira despertasse o interesse do Sabiá. Clara cantava o povo, e a Portela representa o guerreiro povo do subúrbio do Rio de Janeiro. A identificação foi imediata.

Azul. Azul do céu. Clara sempre ocupou lugar de destaque nos desfiles portelenses. Gravou sambas, como “Ilu ayê”, de 1972, interpretou na avenida “Macunaíma, herói de nossa gente” ao lado de Silvinho, Candeia e do compositor David Correa. Um de seus maiores sucessos foi “Portela na avenida”, um emocionante samba-exaltação que ficava mais bonito ainda na voz ímpar de Clara Nunes. Era madrinha da Velha Guarda e freqüentou os tradicionais pagodes do Portelão até poucos dias antes de se internar para a fatídica cirurgia.

Branco. Branco das nuvens. Em 1984, um ano após seu desaparecimento, Clara foi uma das homenageadas no enredo “Contos de Areia”, representando sua mãe Iansã. As festas típicas de sua região também estavam presentes no enredo. Antes do desfile, porém, a escola esquentou com sambas de Clara, e um minuto de silêncio foi respeitado, aumentando a emoção dos portelenses.

Azul e branco. Cores do céu. Cores da Portela. E as homenagens a Clara seguiram ao longo dos anos, ensinando para as novas gerações quem foi Clara Nunes. No desfile de 1992, no último carro, que fazia referência à Portela, lá estava uma imagem gigantesca de Clara. Essa mesma imagem hoje está no barracão, como se abençoasse todos aqueles que trabalham para colocar a Portela na avenida. Clara, definitivamente, é lembrada como um dos maiores portelenses de todos os tempos, estando ao lado de Paulo da Portela, Natal e outras personalidades que ajudaram a construir essa fantástica escola de samba que é a nossa Portela. Um típico caso de amor.


Três raças e uma voz

A Natureza também se revolta. A força das mares, dos tufões. Demonstração de poder. Clara leva a voz das três raças para o mundo, difundindo a cultura brasileira. Além da América Latina, seu sucesso se espalhou por países como Suécia, Espanha, Israel, Portugal, Alemanha e Japão, onde grava um especial para a NHK, televisão japonesa. Junto com outros consagrados artistas brasileiros, Clara retorna em 1980 para Angola. Na volta, Chico Buarque, que também participou dessa excursão, compõe “Morena de Angola”, especialmente para Clara. Sucesso absoluto. Através de Clara, o mundo pode conhecer a verdadeira cultura brasileira, eram três raças representadas em uma voz, Clara espalhou para o mundo seu amor.


“Adeus, sabiá, até um dia”

Nascer e morrer. Apenas etapas de uma mesma vida. Clara faleceu dia 02 de abril de 1983, depois de 28 dias em coma profundo. Internara-se em uma clínica particular da Zona Sul do Rio de Janeiro para uma cirurgia de varizes, mas sofrera complicações com a anestesia, resultando em um choque anafilático. Alguns afirmam que o problema foi motivado por erro médico, o que é desmentido pela clínica responsável. Enquanto Clara padecia inconsciente no leito de um quarto, os jardins da clínica se transformaram em ponto de intensa romaria, reunindo diariamente uma multidão de fãs que suplicavam pela restabelecimento da cantora.

O velório aconteceu no Portelão e reuniu uma multidão calculada em aproxima-damente 50.000 pessoas. Da quadra da Portela, o cortejo seguiu para o cemitério São João Batista, onde a guerreira descansa em paz. Até hoje, o túmulo de Clara é um dos mais visitados, reunindo até pessoas que acreditam que a cantora é capaz de realizar milagres. Na imaginação popular, “Santa Clara”. A santa do amor.


Revisitando o sucesso: Clara, síntese da pluralidade cultural

Ao longo de toda a história brasileira, a diversidade cultural do nosso povo sempre foi um problema para os projetos hegemônicos das elites nacionais. Na República Velha, os valores culturais europeus, sobretudo franceses, eram difundidos como “superiores”, em detrimento das manifestações populares, oriundas das populações humildes, perseguidas e rotuladas como “inferiores”. A ascensão de Vargas ao poder traz mudanças substanciais para as relações políticas e ideológicas do país. Sobretudo após o Estado Novo, o projeto nacionalista fez o samba, manifestação urbana das classes populares do Rio de Janeiro, emergir como símbolo de “identidade nacional”.

Muda-se o enfoque, permanece o aspecto uniformizante. Ao construir, através do samba, um projeto de cultura nacional, deixa-se para um segundo plano as culturas regionais, que compõem a maior riqueza do Brasil. Manifestações que se espalharam de norte a sul do país, resultado dos aspectos peculiares dos povos que formaram nossas mais diversas regiões.

O Brasil é um país multicultural. Em nossa formação, estão contribuições de povos africanos, europeus e dos nativos indígenas americanos, que ao longo dos anos se fundiram. Não em uma única manifestação, mais em várias culturas espalhadas pelo País. A cultura brasileira é, portanto, múltipla e mestiça.

Clara percebeu a riqueza dessa multiplicidade cultural. Ao contrário dos governantes que estiveram à frente de nosso país, Clara compreendeu que não se pode procurar em nosso país uma cultura única e hegemônica, entendeu que a cultura brasileira não é formada por uma totalidade, e sim por vários aspectos distintos e de igual importância.

Clara não buscou encontrar algo que identificasse todas as regiões, cantou cada parte do imenso quebra-cabeça que junto forma o povo brasileiro. Somente entendendo e respeitando cada uma dessas peças, Clara conseguiu descobrir a verdadeira cultura brasileira, o verdadeiro Brasil.

Clara é a síntese da pluralidade cultural brasileira. Cantou, entre outras coisas, frevo, xote, xaxado, samba, valsa, marcha-rancho e afoxé. Onde tinha voz de povo, Clara aparecia para ouvir e cantar. Por isso Clara era tão querida. Seu sucesso não surgiu como imposição de uma mídia que difunde determinados cantores em rede nacional, e sim pela identificação que conquistou em cada região do país. Seu sucesso era espontâneo, fincado nas raízes do povo brasileiro e de suas várias manifestações culturais.


Cronologia:

1942 – Nasce em Paraobeba, atual Caetanópolis, em Minas Gerais

1944 – Perde o pai, e logo em seguida a mãe, sendo criada por uma das irmãs

1952 – Ganha, aos 10 anos, seu primeiro concurso de calouros.

1956 – Começa a trabalhar como tecelã

1958 – Muda-se para Belo Horizonte, para morar com a irmã Vicentina

1960 – Ganha o primeiro lugar na fase mineira do concurso “A Voz de ouro do ABC”.

1963 – Apresenta um programa próprio na TV Itacolomy

1965 – No Rio de Janeiro, é aprovada em teste da gravadora Odeon

1966 – Lança seu primeiro LP, “A voz adorável de Clara Nunes”.

1968 – Grava seu primeiro sucesso, “Você passa. Eu acho graça”.

1971 – Viaja para Luanda e volta determinada a cantar algo próximo das raízes brasileiras. Lança seu primeiro LP produzido por Adelzon Alves.

1974 – Faz sucesso ao lado de Paulo Gracindo em “Brasileiro, profissão esperança”

1975 – Interpreta “Macunaíma” na avenida. Casa-se com Paulo César Pinheiro, que passaria a produzir seus discos “Claridade” bate recorde de vendas – nunca uma mulher havia vendido tantas cópias de disco.

1977 – Inaugura o Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro, com o show “O canto das três raças”.

1981 – Estréia o show “Clara Mestiça”, dirigida por Bibi Ferreira, depois de três anos afastada dos palcos.

1982 – Seu sucesso chega à Alemanha e ao Japão, onde grava um especial para a NHK

1983 – Devido a complicações em uma cirurgia de varizes, falece depois de 28 dias de coma profundo.

Uma multidão acompanha seu velório no Portelão e segue o cortejo até o cemitério São João Batista.

Pesquisa e criação de texto: Fábio Pavão


Bibliografia:

Site:
www.geocities.com/southbeach/bay/2796/

Livreto de propaganda do espetáculo Brasil Mestiço

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