13/05/2024
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Candeia

Candeia. Como defini-lo?

Menino de Oswaldo Cruz, filho de Portelense tradicional, jovem compositor campeão do nosso carnaval, um dos maiores vencedores de sambas da Portela, maior partideiro de todos os tempos, fiel defensor da nossa cultura popular…

Candeia. Fogo intenso do samba, chama imortal da arte, luz que inspirou todos os apaixonados pela verdadeira cultura brasileira, guerreiro que mesmo sem andar difundiu sua mensagem em forma de canção…

Defini-lo é uma árdua tarefa. Foram apenas 43 anos, mas 43 anos vividos intensamente, como se Candeia pressentisse que seu tempo seria curto.

Mas como defini-lo? Como defini-lo diante de 43 tão ricos anos?

Simplesmente… Candeia…


O Menino de Oswaldo Cruz

Antônio Candeia Filho nasceu no dia 17 de agosto de 1935, na rua João Vicente, em Oswaldo Cruz. Seu pai, o gráfico Antônio Candeia, conhecido após o sucesso do filho como Candeia velho, já participava da Portela, e foi, para orgulho do filho ilustre, idealizador da comissão de frente uniformizada, pioneirismo da nossa escola. Mesmo sendo integrante da Portela, seu pai não o deixava freqüentar os ensaios.

Ainda menino, Candeia jamais esqueceu o dia em que pela primeira vez visitou sua escola de coração. Na época a sede ainda era no antigo bar do Nozinho, ponto de encontro obrigatório da turma de Oswaldo Cruz.

Mas, se o pai proibia, sua mãe, conhecida como dona Maria, conseguia dinheiro para o filho comprar a fantasia. Seu primeiro desfile foi em 1950, com 14 anos, fantasiado de mecânico. À medida que crescia, o jovem Candeia ganhava mais intimidade com o samba. Nas festas de Dona Esther, Candeia tinha contato com alguns dos maiores sambistas de Oswaldo Cruz e de toda a cidade, que vinham para o bairro participar dos famosos encontros da tia festeira.

Na casa de Dona Esther, Candeia conheceria também outras manifestações culturais, como o jongo, que fazia sucesso em toda a região de Oswaldo Cruz e Madureira.


O Jovem Compositor Campeão

Em 1953, aos 17 anos, Candeia, em parceria com Altair Prego, desbanca Manacéa e vence sua primeira disputa de sambas na Portela. Esse desfile foi apoteótico, a escola ganhou nota máxima em todos os quesitos, e Candeia seguia a passos largos o caminho para a consagração. Além de 1953, Candeia venceria também as disputas de 1955, 56, 57, 59 e 65, a grande maioria em parceria com o amigo Waldir 59.

Foram ao todo seis vitórias na difícil disputa de sambas da Portela, que sempre teve a melhor ala de compositores entre todas as escolas de samba cariocas. Dos seis sambas de Candeia que a Portela defendeu na avenida, a escola sagrou-se campeã em 3 oportunidades (1953, 57 e 59). A partir de então, estavam abertas as portas para que seu sucesso fosse muito mais além dos desfiles das escolas de samba.


Candeia e os “impossíveis”

Candeia era integrante assíduo da Ala dos Impossíveis. Certa vez, inconformados com a peruca de sisal que teriam que usar durante o desfile, Candeia e seus amigos de ala, para disfarçarem o acessório, criaram uma coreografia para que o cabelo passasse despercebido durante o desfile.Dito e feito. A imprensa teceu enormes elogios à novidade, e a experiência foi repetida com expectativa nos anos seguintes. O grupo, inclusive, chegou a ser contratado para se apresentar no musical Night and Day, de Carlos Machado. Estava criada a coreografia de alas nas escolas de samba.


O Policial Candeia

Buscando um emprego seguro, Candeia consegue ser aprovado em terceiro lugar no concurso para a Polícia. Durante sua carreira policial, Candeia ganharia a fama de severo e durão. Segundo Bretas, outro compositor que também era integrante da força policial, Candeia era voluntarioso, valente, sempre disposto a cumprir seu trabalho. Durante sua passagem pela Polícia, Candeia viu, em nome do dever, sua relação com alguns antigos amigos serem modificadas, pois algumas de suas atitudes eram tidas como estranhas. Exercendo sua função, Candeia foi o responsável pela prisão do famoso Neném Ruço, do Engenho da Rainha. Muitos sambistas conhecidos, como Dominguinhos do Estácio e Paulinho da Viola, também foram abordados pelo policial Candeia.


“Sentado em trono de Rei”

Era dia 13 de dezembro de 1965, esquina da rua Marquês de Sapucaí com Presidente Vargas. Num episódio até hoje mal-explicado, Candeia é baleado nas costas após uma confusão com três ocupantes de um caminhão, e levado semimorto para o hospital Souza Aguiar. Após 72 horas desenganado pelos médicos, Candeia consegue sobreviver. Várias cirurgias trouxeram algumas melhoras, mas Candeia jamais voltaria a ter sensibilidade da cintura para baixo. Candeia, assim, estava condenado a viver pelo resto da vida “sentado em trono de rei”. A cadeira de rodas torna-se sua amiga inseparável. No início foi difícil, mas Candeia conseguiu recuperar a alegria pela vida.

Sua música cresce em qualidade, suas canções despontam definitivamente para a glória, retratando sua própria situação apesar da dor. Era a vida que continuava.


De qualquer maneira

Candeia

De qualquer maneira

Meu amor eu canto

De qualquer maneira

Meu encanto eu vou sambar


Com os olhos rasos d’água

Ou com o sorriso na boca

Com o peito cheio de mágoa

Ou sendo a mágoa tão pouca

Quem é bamba

Não bambeia

Falo por convicção

Enquanto houver samba na veia

Empunharei meu violão


Sentado em trono de rei

Ou aqui nesta cadeira

Eu já disse eu já falei

Que seja qual for a maneira

Quem é bamba

Não bambeia

Falo por convicção

Enquanto houver samba na veia

Empunharei meu violão


O Quilombo dos sambistas

Inconformado com os rumos que as escolas de samba estavam tomando, Candeia funda o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, no dia 08 de dezembro de 1975. A função do Quilombo seria preservar o que Candeia considerava ser a verdadeira essência das escolas de samba, um movimento de resistência, como ele explicava. O Quilombo não competiria, não traria a preocupação com a parte estética, cada vez mais acentuada nas escolas já na década de 70.

Além da resistência cultural, o GRAN Samba Quilombo também trouxe para a comunidade de Coelho Neto, onde estava localizado, uma série de iniciativas sociais, propagando os valores culturais da população negra.


Em Defesa de um Ideal

A luta pela preservação da verdadeira cultura brasileira, e da valorização do negro em nossa sociedade, tomaria os últimos dias da vida de Candeia. Suas músicas expressam constantemente essa preocupação.

A influência estrangeira nos jovens das comunidades carentes estaria afastando-os dos valores de seus antepassados, tornando mais difícil a consciência de grupo, fundamental para a superação da situação subalterna à qual os negros estavam submetidos. Candeia percebia isso, e usava a música para transmitir suas mensagens.

“Eu não sou africano

Nem norte-americano

Ao som da viola e pandeiro

Sou mais o samba brasileiro”

“.Negro, acorda, é hora de acordar

Não negue a raça

Torne toda manhã

Dia de graça.

Negro, não humilhe

Nem se humilhe a ninguém

Todas as raças

Já foram escravas também…”


O Escritor

Difundir a mensagem pela música parecia pouco, Candeia queria ir mais além. Junto com Isnard Araújo, escreve o livro “Escola de samba – Árvore que esqueceu a raiz”, pela editora Lidador. O livro trata das transformações que as escolas de samba sofreram ao longo dos anos, destacando a influência cada vez maior que a classe média tinha nas escolas. Se antes foi difícil encontrar comprador, hoje esse livro é uma das principais referências sobre a origem e a história das escolas de samba e seus principais quesitos.

Também ao lado do amigo Isnard, Candeia participa do concurso de monografia sobre Paulo da Portela, promovido pela Funarte. O compositor não viveu para ver o resultado, mas seu trabalho, concluído graças ao empenho do companheiro, ficou em segundo lugar, atrás apenas do trabalho de Lígia Santos e Marília Barboza – “Paulo da Portela – traço de união entre duas culturas”.


E a chama se apagou… será?

No dia 16 de novembro de 1978, Candeia falecia no hospital Cardoso Fontes, em Jacarepaguá, vítima de uma parada cardíaca, conseqüência de infecção generalizada do organismo. Morria o sambista, nascia o mito. A chama permanece viva, como nas palavras do sambista Luiz Carlos da Vila:

“A chama não se apagou

Nem se apagará

És luz de eterno fulgor

Candeia

O tempo que o samba viver

O sonho não vai acabar

E ninguém irá esquecer

Candeia”

Eterna “luz da inspiração”

Mais de vinte anos após sua morte, Candeia é lembrado como maior partideiro de todos os tempos. Suas músicas são sempre citadas como exemplo. Aqueles que viveram seu tempo lembram com saudades; os mais jovens aprendem suas canções com respeito e admiração.

Candeia é a eterna “luz da inspiração”, inspiração para os poetas e lideranças negras que seguiram seu ideal. Sua mensagem permanece viva, suas preocupações hoje são mais atuais do que nunca, e assim o mestre se perpetua. Candeia foi assim, é assim, será assim. Simplesmente Candeia.

“Sinto-me em delírio

Luz da inspiração

Acordes musicais

Invadiram o meu ser sem querer

Me elevam ao infinito da paz

Sinto-me vazio no ar a flutuar”

Pesquisa e criação de texto: Fábio Pavão


Bibliografia:

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ed. Lumiar, 1996.

VARGEM, João Baptista M.. Candeia, luz da inspiração. Rio de Janeiro, Martíns Fontes/Funarte, 1987.

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