Tudo azul
Tudo azul
Calçadão de Ipanema
O sábado anunciava-se luminoso e quente. Adiávamos a chegada à praia, procurando um sanduíche, um suco de tamarindo, qualquer coisa. Mas já recebíamos os sinais de algo que não tem explicação.
A primavera no Rio é impregnada de ansiedade. Talvez por já traduzir a espera pelo verão, que revela a alma desta cidade solar. E ansiosos estávamos.
Pisar a areia de Ipanema foi precedido dos primeiros acordes. Passava-se o som. Às 16h, aquela faixa da praia, incrivelmente vazia, tinha algo de deserto. As tendas à frente, o palco, as vozes, tecia-se o encanto de uma noite na África. O Saara, as florestas, as savanas. Caravanas inteiras encaminhavam-se para ouvir cantos ancestrais. O céu avermelhava-se em azul e dourado. O sol caía.
Era a Velha Guarda da Portela. E nós, combinados que estávamos no orgulho de mostrar ao mundo inteiro a nossa paixão e a nossa origem, éramos reconhecidos. Nossas camisas com a Águia e as pessoas olhando, comentando “Ih, ah, lá, Portela!” Nossa pastora Surica ensaiando, dando tchauzinho em nossa direção. Meu peito inflou – bobagem de menino, mas que diz “estou aqui.”
De grupo em grupo formou-se a multidão. Multidão não, que parece algo de desordem. Ali, aquele momento, tudo estava em seu lugar. O calor, o sal nas peles, as cores diversas. Cerveja, risadas, cadeirinhas, reencontros e esperas de quem estava atrasado. Alguma impaciência no ar, palmas, assovios, o atraso. Cai a noite.
Os senhores de terno branco e azul, os seus chapéus, as senhoras. A Velha Guarda da Portela. “Quantas lágrimas…”, “Passado de glórias”, “Noite”. Desfiavam-se partidos e canções que estavam na boca de todo mundo. Monarco chama ao palco “nossa deusa, Marisa Monte”, que em reverência saúda aqueles imponentes sambistas. Era emocionante cantar “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar”, “quando vem rompendo o dia, eu me levanto, começo logo a cantar essa doce melodia que me faz lembrar daquelas lindas noites de luar, eu tinha um alguém sempre a me esperar…”, “volta, volta, meu amor, quero sentir novamente o teu calor…”, Ensaboa: as vozes das lavadeiras, o canto e o trabalho, eram as pastoras. E chega Paulinho da Viola. Sorrisos e rostos iluminados de emoção. O céu perfeito. “Sentimentos”. Era uma noite de alegria contida, uma alegria portelense, imensa, que cabe na sua própria medida. Era uma noite de sambas, sembas, lundus, chorinhos, fados, lamentos de mar, ausência de marinheiros. Cesária Évora, convidada especial, nos brinda com os sons de Cabo Verde. Seus pés descalços dão certeza de que majestade não tem nada a ver com realeza. E a “deusa” rende-se à “rainha” e compartilha o pé no chão. De repente, tudo tão brasileiro. De repente, tudo tão africano.
As pessoas sambando, os casais namorando. E a cantoria solta. O inevitável encerramento com “Foi um rio que passou em minha vida” preenche a noite com uma satisfação de prazer, comunga as forças da natureza. Faltava alguém ali.
E os fogos que acendiam aquela noite pareciam iniciar outra história.
Autor: Rogério Rodrigues